Atraído
pelo silêncio, entrei no beco como quem sobe num navio iluminado. Modesto Carone
O livro do mês
de Maio foi o belíssimo Hora de alimentar
serpentes, da autora Marina Colasanti. E iniciar o meu texto com esse
trecho do Carone é descrever exatamente como entrei na obra de Colasanti:
atraída pelos textos curtos, pela necessidade de leitura e pelo deslumbre das
palavras. E é claro que terminei sentada no chão, intoxica pelo perfume das
microficções dessa mulher sensacional.
O livro é uma
montanha russa. Hora você se vê no alto, compreendendo as letras, participando
ativamente da obra, e então, de repente, você está em queda livre, vertiginosa,
mergulhando no mais profundo de si e da obra, e o que fica é o grito
estrangulado na garganta.
A obra é
composta de 206 narrativas – eu poderia dizer contos, mas a ficção da Colasanti
traz os gêneros textuais em linhas muito tênues –, com a presença das maiores
características das obras da autora, como brevidade e concisão, final
surpreendente e implícito, intertextualidade, humor e muitas elipses
linguísticas.
Esse livro
riquíssimo foi a leitura exigida no primeiro exame de qualificação da UERJ de
2019, dessa forma a leitura foi inicialmente “obrigatória”, já que eu deveria
ler para trabalhar em sala com os alunos. Mas qual não foi a minha surpresa em
perceber que o livro me pertencia até a última palavra, cada texto me levava ao
extremo e exigia, às vezes, duas ou três leituras da mesma história.
Uma obra que valeu
a pena cada leitura e que, o que pude observar enquanto trabalhava com meus
alunos, divide gostos. Alguns alunos não sabiam como desgrudar do livro e
outros só queriam manter distância dele. O que todos tentávamos entender
durante a leitura é como um livro tão escamoso pode se embrenhar em nós e ainda
colocar ovos.
Seguem dois
textos para vocês ficarem com vontade de correr para a livraria e adquirir um
exemplar:
DIA CHEGARIA
Hora de
alimentar as serpentes que habitavam sua cabeça.
Concentrou o
pensamento em pequenas criaturas vivas, rã, passarinho. Um gosto de sangue
chegou-lhe à boca, e o mover-se do novelo sibilante, que apenas intuía,
aquietou-se. Sua segurança estava garantida por mais algum tempo. Dia chegaria,
entretanto, em que suas inquilinas haveriam de por ovos.
É VOCÊ?
É você? pergunta
a mulher em voz alta ao ouvir o marido entrando em casa.
Mas ele, que há
anos se procura, não tem hoje resposta segura para lhe dar. Sai devagar, fecha
a porta com cuidado. Voltará de madrugada, quando ela, dormindo, não o
confrontar com a pergunta.